> Livro 10: Conexão-Evangelho

Dica de leitura 03

O teólogo, doutor em literatura e professor de homilética norte-americano Francis C. Rossow é pouco conhecido no Brasil.  Seu livro mais popular – Preaching the Creative Gospel Creatively (“Pregando o Criativo Evangelho Criativamente”), de 1983, não possui tradução oficial (existe uma tradução não oficial que é utilizada em alguns círculos homiléticos brasileiros).

Esta Dica de Leitura apresenta o último livro de Rossow: Gospel Handles – Finding New Connections in Biblical Texts (“Conexões-Evangelho – Localizando novas conexões em textos bíblicos”). Foi publicado pela Concordia de Saint Louis, EUA, em 2001. São 352 páginas.

O título Gospel Handles se refere a uma técnica homilética idealizada por Rossow e inicialmente Imagemapresentada no seu livro Preaching. Considerando o seu uso prático na pregação, a expressão pode ser traduzida como “Conexão-Evangelho” (literalmente, seria algo como “Alavanca-Evangelho”).

Segundo Rossow, a técnica consiste em ter como texto-base para uma pregação uma porção bíblica que não contem Evangelho (a boa notícia da salvação de Deus em Jesus Cristo).  Esta porção bíblica pode eventualmente servir como uma ponte, uma alavanca, ou conexão para o Evangelho, que está situado em outra parte da Escritura.  Esta “alavanca” pode ser um termo, uma frase, uma imagem.  (Todavia, a técnica também pode ser utilizada para “extrair” do texto-base do sermão um “Evangelho extra”, ou seja, uma abordagem evangélica diferente do que a tradicional ou mais evidente.)

A técnica é amplamente demonstrada nesta Dica Leitura, com mais de cinco dezenas de textos bíblicos utilizados.  Note-se que Rossow utiliza somente perícopes (trechos bíblicos) dos quatro Evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João – e que todos os exemplos são baseados na mais tradicional versão inglesa da Bíblia, a King James.  (É preciso ressaltar: a técnica pode ser baseada em um termo ou expressão bíblica de uma determinada língua e versão que não tem correspondente exato em outra versão ou língua, razão porque seu uso “tal qual” pode ser prejudicado ou até impossível.)

Nota: A técnica idealizada pelo professor Rossow (o qual tive o privilégio de ter como professor em duas disciplinas em meu curso de mestrado) é apresentada e ilustrada também em meu livro Pregação Criativa, no capítulo 19.

Correlação no par Lei e Evangelho

Umas das formas de variar o uso de formulações de Lei e Evangelho é a correlação. O modo como o a Lei é pregada precisa ter a sua correlação bíblica de como o Evangelho é proclamado. Pode-se dizer que a mensagem bíblica pode ser comprimida em três grandes blocos de correlações: culpa e perdão, derrota e vitória, obediência e poder.
A Lei é um poderoso martelo de Deus para mostrar aos seres humanos a sua culpa sob o signo do pecado. Através dele, o Criador nos convence do pecado e da nossa incapacidade de realizar qualquer obra significativa para alterar a situação. Já o Evangelho garante o perdão de Deus e conforta a consciência. Ele anuncia o amor de Deus em Jesus Cristo, que absorveu toda a ira de Deus em relação ao pecado.
Em outro plano, a Lei não apenas acusa, mas também revela. Ela mostra a situação humana de vazio, ansiedade, frustração, carência por causa do pecado. Ela remove as máscaras que usamos para esconder a nossa verdadeira situação. Ela mostra a nossa miséria e derrota. De outro lado, o Evangelho anuncia que temos vitória, apesar do pecado. Para cada máscara que a Lei faz cair, o Evangelho mostra uma nova situação, uma nova vida. A vitória de Cristo é a vitória de quem crê nele como Salvador. Com ele, a vida passa a ter sentido, rumo.
A terceira correlação é obediência e poder. A Lei requer que continue a ser obedecida para que possa ter relevância na vida dos crentes. Essa busca por obediência é uma conseqüência da graça de Deus. Embora não seja necessária para a salvação, é necessária para a vida cristã diante de Deus. A Lei pode guiar, mas não concede a capacidade de realizá-la. Quem dá o poder para obedecer a Deus é o Evangelho. Ele não requer uma resposta obediente, mas a cria. Ele aponta para o poder que emana da obra redentora de Deus e para o poder que reside na Palavra e nos Sacramentos.
(djj)

Mesmice no Evangelho

Fica evidente que pregar o Evangelho – e com criatividade – normalmente parece mais difícil.  Por ser imutável, fixo, parece familiar demais – um sério candidato a ser um clichê e entediar os ouvintes com mesmice e frustrar o pregador.  É muito fácil o pregador, tendo desenvolvido dois ou três modos de apresentar o Evangelho, acostumar-se a eles.  E aí, rotineiramente, a certa altura do sermão, “ele aciona um botão imaginário e lá surge o que pode soar como uma fórmula de Evangelho pré-gravada”[i]  (djj)


[i] Rossow, Unitentional Gospel-Omissions in Our Preaching, Concordia Journal v. 5, nº 1, 1979, 8-12.  Esta situação talvez ajude a explicar – não justificar! – porque muitos sermões parecem mais más-novas do que Boas-Novas.  A presença de dor, pecado e diabo é mais marcante do que a presença da graça de Deus (veja Motl, James R. Homiletics and Integrating the Seminary Curriculum. Worship, v. 64, nº1, janeiro de 1990, pp, 24-30).  O pregador faz bem em constantemente revisar o clássico de C.F.W.Walther, Lei e Evangelho (Porto Alegre: Concordia, 1977; preferencialmente o texto integral em inglês, The Proper Distinction Between Law and Gospel, 14º impressão. Saint Louis: Concordia, 1986).  Dois estudos contemporâneos úteis são: Stuempfle, Herman G. Preaching Law and Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1978; Lischer, Richard, A Theology of Preaching: The Dynamics of the Gospel. Nashville: Abingdon, 1981.

Ecos do Evangelho

Rossow sugere que até mesmo é possível encontrar ecos do Evangelho na literatura secular.  Estes “padrões-Evangelho” ser intencionais, prováveis ou não intencionais.  Ele cita como exemplo de padrão intencional o clássico infantil de C. S. Lewis O Leão, a Bruxa e o Quarda-roupas. Como prováveis, cita Dom Quixote, de Cervantes, entre outros.  E para padrões não intencionais, cita romances como O Eterno Marido (Dostoevsky) e O Retrato the Dorian Gray (Wilde).  Na medida em que se envolve com diferentes tipos de literatura (e outras formas de arte), o pregador deve estar atento para as possibilidades homiléticas.

Obviamente, a fonte de aprendizagem e criatividade não se restringe ao consumo de romances.  O pregador precisa ser um “consumidor de linguagem”.  Ele precisa estar trabalhando a sua própria linguagem quando está lendo romances, indo assistir a uma peça de teatro ou a um filme ou à TV ou quando observa como as pessoas constroem suas vidas com a assistência de palavras. 

Poetas, dramaturgos, romancistas costumam dominar tanto a linguagem como as palavras.  Os poetas, por exemplo, podem ser uma importante fonte de inspiração para os pregadores, pois fazem uso intenso de figuras de linguagem.  Uma comparação entre os salmos e poemas de hoje mostrará que os recursos para a criatividade continuam inesgotáveis.  Assim pode ser com os sermões. (djj)

Jesus, o Médico

Outra figura pouca utilizada, mas de grande potencial evangélico, é a de Jesus como Médico.  Em três Evangelhos (Mt 9.10-13; Mc 2.15-17 e Lc 5.29-32) ele dá a entender que a sua missão terrena de salvar os seres humanos em pecado poderia ser vista como a de um médico que cuida de doentes.

Como se observa em inúmeros relatos dos Evangelhos, Jesus agiu como “médico” curando seres humanos de diferentes problemas físicos.  Os milagres de curas faziam parte do seu ministério.  Todavia, quando Jesus se sugeriu que a sua missão era de curar os doentes, que ele tinha se encarnado para ser um “Médico”, ele estava se referindo a uma condição espiritual.

Para a maioria dos ouvintes das nossas pregações, a analogia é evidente. A figura de um médico em nossa sociedade pode eventualmente ter conotações negativas em alguns casos, mas o seu papel de cuidador e restaurador da saúde é preponderante.  Por isso, é fácil apontar para Jesus como aquele restaura a nossa saúde espiritual e cuida dela através da Palavra e dos Sacramentos.  Para pessoas com saúde e para as doentes, a imagem de Jesus como Médico é consoladora, restauradora e fortificante. (djj)

Rotina na Lei e no Evangelho

Fica evidente que pregar o Evangelho – e com criatividade – normalmente parece mais difícil. Por ser imutável, fixo, parece familiar demais – um sério candidato a ser um clichê e entediar os ouvintes com mesmice e frustrar o pregador. É muito fácil o pregador, tendo desenvolvido dois ou três modos de apresentar o Evangelho, acostumar-se a eles. E aí, rotineiramente, a certa altura do sermão, “ele aciona um botão imaginário e lá surge o que pode soar como uma fórmula de Evangelho pré-gravada”
Schimitt detecta este mesmo problema ao dizer que uma forma rotineira de proclamar a Lei e o Evangelho em cada sermão pode fazer com que alguns ouvintes não mais ouçam o que está sendo dito. A repetição de qualquer forma de proclamação pode fazer com que eles parem de prestar atenção nas palavras e se focar no ato do pregador usar a mesmas palavras sempre de novo. Para ilustrar seu ponto, ele conta o exemplo de um pastor que costumava concluir seus sermões apontando para as bênçãos da Santa Ceia e convidando os ouvintes a participarem dela. Seu hábito já havia ficado conhecido entre outros pastores vizinhos. Certo dia aconteceu um encontro pastoral aconteceu na Igreja deste pastor. Um dos participantes perguntou a uma senhora da Comissão de Altar se era verdade que o seu pastor sempre se referia à Santa Ceia no sermão. A sua resposta foi: “Sim, e é desta forma que sabemos que ele já está terminando o sermão.” (djj)

Criando e recriando na pregação

Criatividade na pregação tem a ver com o como a criativa Palavra de Deus é proclamada e aplicada.  Ela objetiva, além de colaborar na exposição de uma idéia ou conteúdo, obter e reter a atenção do ouvinte.  Antes que a Palavra de Deus possa provocar transformação no ouvinte (basicamente salvação ou santificação), é necessário que ele se interesse, ouça, escute, preste atenção, esteja predisposto, permaneça com o pregador. 

A proclamação da Palavra de Deus, além de correta e ortodoxa, deve ser veiculada com palavras vivas, embaladas com energia e vigor, gostosas de serem ouvidas e fáceis de serem entendidas.  Grindal diz que a linguagem da pregação precisa ser, se não eloqüente, pelo menos “interessante o suficiente para atrair os ouvintes… e verdadeira, para direcionar a atenção do ouvinte do pregador para a Palavra [de Deus]…”[i] Ou seja, a comunicação eficaz do Evangelho também passa em tornar a mensagem atrativa para os ouvintes.

A mensagem bíblica sempre é criativa. Ela cria – fé, salvação, vida santifica. A Palavra de Deus age, atua. Ela tem poder. A encarnação de Jesus, a mensagem suprema de Deus, foi colocada em termos de Palavra, de Verbo (cf. João 1).  Jesus é a proclamação e- e ação de Deus em favor dos seres humanos.

A criatividade é intrínseca à pregação. Através dela Deus continua criando hoje. Por isso, o pregador deve criar as condições adequadas para que a ação de Deus aconteça com todo o vigor possível na vida dos ouvintes. Através dele Deus quer falar com eles.


[i] Grindal, Gracia. Preaching the Word in Good and True Words.  Word & World, v. X, n.º 3, verão de 1990, pp. 237-246